O tema ora apresentado apenas em seu título constitui-se de um complexo sistema de normas que estabelece o que efetivamente as pessoas haverão de preferir no que pertine ao seu histórico de vida, o que deve ou não ser divulgado e/ou publicado em livros, jornais e revistas e, em alguns casos, até mesmo o que pode ser objeto de documentários para levar ao conhecimento do público, como, por exemplo, biografias de personagens da nossa História.
Mas, a questão que realmente chama a nossa atenção e que exige uma análise pormenorizada é se, os relatos que muitos se propõem a fazer, de fato, correspondem à verdade ou se quem traz a público a sua “versão” ou se os próprios fatos vividos e experimentados pela pessoa ou pessoas quando de sua ocorrência.
Um dos grandes autores da Medicina Legal – Hélio Gomes – em obra editada na década de 1960, narra um fato curioso, ao tratar do capítulo relativo aos “testemunhos”. Walter Raleigh, madrugada adentro, escrevia mais um capítulo a respeito da “História da Humanidade”. Em dado momento, ouviu uma discussão e abriu a janela de seu apartamento, localizado no segundo andar do prévio em que residia. Instantes a seguir, o vizinho, do apartamento ao lado, também abriu a janela e ambos assistiram àquela discussão quando um dos contendores saca de uma arma e mata o outro. Walter Raleigh e seu vizinho foram chamados à Delegacia de Polícia para esclarecer o ocorrido. Os depoimentos de ambos, em vários momentos do relato dos fatos, entraram em conflito e, mesmo postos frente à frente, em uma acareação, não mudaram seus posicionamentos a respeito do ocorrido.
Então, ao retornar à sua casa, Walter Raleigh queimou as quatro mil páginas que já havia escrito sobre a “História da Humanidade”, ao fundamento de que, se os fatos que havia presenciado naquela madrugada não tinham sido narrados com a necessária fidelidade, o que se dirá de fatos vinculados a alguns milhares de anos?
Nesse particular, por natural, cabe uma avaliação que tem fundamento num brocardo latino que afirma: cum grano salis. Em linhas gerais, o sentido único desse brocardo é simplesmente afirmar que, cada um conta determinado fato segundo o seu conhecimento no que tange à forma de “temperar” a sua própria narrativa. Por isso, adicione um grão de sal. E nesse adicione um ou muitos grãos de sal, à medida em que as pessoas ouvem determinada narrativa de um mesmo fato, repassando-a adiante, a “estória” se modifica e acaba por descaracterizar-se. Isso em linguagem de comunicação costuma-se chegar de feed back, ou seja, como a informação chegou às outras pessoas e como elas trataram-na.
Da mesma forma que, excluído esse brocardo latino, encontramos ainda o dito popular que afirma que “quem conta um conto aumenta um ponto”. Essa é uma questão de extremada relevância. Basta verificar que uma determinada pessoa, de vida pública, por ser um personagem do mundo artístico, não autorizou a publicação de sua biografia e o caso foi para nos Tribunais, exatamente porque houve narrativas não condizentes com a realidade na perspectiva de quem viveu aquela história de vida.
Esse é um ponto para o qual temos que voltar nossa atenção. Não podemos simplesmente contar ou narrar fatos que dizem respeito a outras pessoas sob a nossa perspectiva de visão, porque podemos estar sendo absolutamente inconsistentes em nossa forma de relatar esse ou aquele episódio e, efetivamente, nos distanciarmos da realidade vivida naquele momento da vida de outrem.
Ademais disso e com tudo isso, é de relevo frisar que estamos diante de uma questão de grande relevância para um episódio da vida de outrem, quiçá para a biografia alheia. Não se pode ignorar que as pessoas, todas, têm o direito a uma vida privada e à respectiva privacidade de vida. Não podemos nos dar ao “luxo” de sermos detentores de realidades que não nos pertencem e menos ainda fazer comentários desairosos porque o jornalista “x” ou “y” afirmou isso ou aquilo a respeito de determinada personalidade da vida, seja profissional, política ou social. A questão é que cada um de nós temos o dever de preservar, muitas das vezes, o que “achamos” que sabemos a respeito disso ou daquilo, dessa ou daquela pessoa.
O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 21, afirma que “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Isso nos conduz à convicção de que o Juiz deverá adotar as providências cabíveis para preservar a vida privada da pessoa natural. De outro lado, é a própria Constituição da República que, no seu artigo 5º, inciso X, dispõe que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Desta forma, a pessoa ou empresa jornalística que se dispuser a uma “aventura” dessa ordem, responderá pelos seus atos em Juízo, não se olvidando, ainda, do que editam os artigos 138, 139 e 140, do Código Penal, a despeito das várias discussões técnicas que existem a respeito sobre a configuração ou não desses tipos penais em situações que tais.
O fato é que as pessoas têm direito a uma espécie de esquecimento, quando necessitam de que a sua privacidade seja respeitada e que a sua honra seja preservada, especialmente, no que se refere à maldade humana.
O Dr. Romeu Tuma Júnior publicou há poucos anos uma obra intitulada “Assassinato de Reputações”, tão logo deixou um relevante cargo no Ministério da Justiça. O fato é que, segundo os seus relatos, publicava-se uma matéria que denegria a imagem de determinada personalidade, atribuindo-se-lhe conduta que poderia ou não ser verídica, porque isso pouco importava naquela circunstância. E a partir daí era instaurado inquérito ou inquéritos para efeito de colocar pessoas sob suspeita da prática de algum ilícito, do qual se sabia, de ante-mão, que era falsa a referida narrativa. O propósito, de fato, era deixar a pessoa à mercê do que se queria alcançar, ou seja, destruir a sua reputação. E isso é obtido facilmente. Basta ter quem manipule certas informações que são publicadas com esse desiderato.
Vimos acontecer recentemente com divulgações de ocorrências envolvendo altas autoridades de nosso País, com os propósitos mais vis. No entanto, não podemos concordar que isso venha se tornar uma práxis porque os seus objetivos são reprováveis e nada castiços.
Nos dias que correm, numa velocidade imensa e intensa, devemos ter em mente que o direito à informação, tal como temos constatado nos últimos meses, por uma mecânica trágica que vem ganhando espaço a cada dia, a ponto de ser rotulada de fake news, com os propósitos mais hediondos e pela própria volatividade de sua divulgação, as pessoas que figuram como personagens dessas falsas notícias, ficam à mercê da especulação alheia e de alguns que se entregam aos comentários mais repugnantes sobre fatos que desconhecem e que somente têm conhecimento de um lado dessa “verdade”, como se as moedas tivessem apenas um lado. Enquanto isso, as pessoas, verdadeiras vítimas dessa realidade, acabam por passar por um verdadeiro linchamento ou lapidação, em que muitos daqueles que deveriam tomar atitudes sérias, acabam atirando as suas pedras vãs e que são capazes de aniquilar toda uma vida por questões inconfessáveis e indeclináveis, pelos interesses mais hediondos e absurdos.
Basta ver certas matérias que são publicadas a respeito dessa ou daquela pessoa e, passado algum tempo, encerrado o processo em que se apurou os fatos e nada restou comprovado, a pessoa acaba absolvida ou excluída de qualquer responsabilidade do que se lhe atribuiu. Quando isso ocorre, nenhuma publicação é levada a efeito com o propósito de desfazer toda aquela tragédia na vida da pessoa cuja honra foi lançada ao pântano pestilento. Basta lembrarmo-nos da Escola Base de São Paulo, onde os Diretores de uma escola infantil foram acusados de molestar crianças. Ao final, absolvidos, ainda houve quem lhes perguntasse se o valor da compensação monetária que receberiam seria suficiente para “pagar” o que eles haviam sofrido.
Assim, devemos refletir muito a esse respeito, antes de nos arrogarmos ao direito de proferir quaisquer tipos de comentários que podem levar alguém, que lutou uma vida inteira para pautar sua reputação e família dentro de padrões de honestidade e compromisso ético-moral, a um pântano que, mais tarde, ao se publicar alguma fake news a seu respeito, esses tais fatos deveriam ser esquecidos para todo o sempre, pelos séculos dos séculos, a fim de que o perpétuo silêncio recaia sobre eles.